3210/00.GAPDL
Inquérito
Exmº
Senhor:
Procurador-Adjunto
Ministério
Público
Comarca
do Funchal
Exmº Senhor
Juiz de Instrução Criminal
Comarca do Funchal
Ildefonso
Manuel Santos Carvalho e Gisela Manuela Delca Pinto, arguidos, não se
conformando com o douto despacho por V. Exª proferido em 21 de novembro de
2012, no decurso da tomada de declarações para memória futura, veem dele
interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, com efeito meramente
devolutivo e subida imediata em separado (artigos 408º, 406º, nº 2 e 407º, nº 1
do Código de Processo Penal), o que faz nos seguintes termos:
VENERANDOS
DESEMBARGADORES DO
TRIBUNAL
DA RELAÇÃO DE LISBOA
MOTIVAÇÃO
OBJECTO
DO RECURSO
Foram
tomadas declarações para memória futura à testemunha Valeria Boevia.
No
ato, os arguidos invocaram verificar-se a nulidade a que se reporta a alínea c)
do nº 2 do artigo 120º do CPP.
O
meritíssimo juiz de instrução criminal proferiu decisão de indeferimento,
decretando a validade do ato, por não reconhecer a arguida nulidade.
DOMÍNIO
DA LÍNGUA PORTUGUESA
A
testemunha é russa, moradora em Portugal. A sua língua materna é o russo.
Conforme
resulta da gravação fonográfica e da transcrição, a testemunha não domina a
língua portuguesa.
Utiliza
o espanhol ou castelhano para se exprimir.
Ora,
mesmo que o juiz de instrução criminal ou qualquer dos participantes conheça o
espanhol, é obrigatória a nomeação de intérprete - nº 2 do artigo 92º do CPP.
Ao
aludir a "má vontade", o
despacho recorrido parece pressupor que qualquer português conhece o
castelhano, porventura pela semelhança das duas línguas ou pelo frequente
contato com a população e a realidade espanholas, através de diálogos com
turistas, viagens, programas televisivos ou imprensa cor-de-rosa.
Mesmo
que assim fosse, haveria que cumprir rigorosamente a lei, como compete ao juiz,
que deve obediência à ordem jurídica. A Assembleia da República aprovou democraticamente
um regime que prevê uma certa tramitação, que deve ser escrupulosamente
cumprida pelos tribunais.
QUADRO
EUROPEU COMUM DE REFERÊNCIA PARA AS LÍNGUAS
O
Estado Português é membro do Conselho da Europa, que aprovou o quadro europeu
comum de referência para as línguas, o único instrumento que serve para aferir
se uma testemunha domina ou não a língua portuguesa - nº 3 do artigo 8º da
constituição.
Assim,
a testemunha revela capacidade de compreensão da língua portuguesa, entendendo os
pontos essenciais quando a linguagem padrão utilizada é clara, tratando-se de
aspetos familiares em contextos de trabalho, escola, tempos livres, etc.
Mas
já demonstra completa incapacidade para responder, utilizando expressões que visam
satisfazer necessidades imediatas ou fornecer informação sobre o local onde
vive, as suas relações, o que lhe pertence, etc. Não logra apresentar-se ou
apresentar alguém. Não consegue comunicar, ainda que de forma simples, em
língua portuguesa.
Portanto,
não atinge sequer o nível A1 do mencionado quadro europeu comum de referência
para as línguas.
A
testemunha não fala português. Logo, não domina a língua portuguesa.
INVALIDADE
A
obrigatoriedade de nomear intérprete resulta do já mencionado nº 2 do artigo
92º do CPP.
A
sua falta tem consequência a nulidade: alínea c) do nº 2 do artigo 120º do CPP.
O
vício foi, de imediato, arguido pelo defensor, no próprio ato.
A
nulidade não ficou sanada: alínea a) do nº 3 do artigo 120º e artigo 121º do
CPP.
As
declarações para memória futura tornam-se inválidas - nº 1 do artigo 122º do
CPP.
INCONSTITUCIONALIDADE
O
nº 2 do artigo 92º do CPP é inconstitucional quando interpretado no sentido de
que não é obrigatória a nomeação de intérprete se apenas a "má vontade" a impuser.
Se,
com boa vontade, deixa de ser obrigatória a nomeação de intérprete, então o nº
2 do artigo 92º do CPP ofende a Lei Fundamental, pois não fica assegurado ao
arguido o direito de entender as respostas, de modo a formular perguntas, no
respeito pelo princípio do contraditório.
Assim,
segundo tal interpretação, a norma do nº 2 do artigo 92º do CPP viola o
estabelecido pelos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, sendo certo que as
declarações para memória futura se destinam a servir como meio de prova em sede
de julgamento.
GARANTIAS
DE DEFESA DO ARGUIDO E DIREITOS PROCESSUAIS
De
resto, não declarando a nulidade do ato, o meritíssimo juiz a quo não assegurou as garantias de
defesa do arguido e impediu-o de exercer os seus direitos processuais,
recusando à defesa a presença de intérprete, em violação do disposto no artigo
10º e no nº 1 do artigo 11º da declaração universal dos direitos do homem e do
que estabelecem o nº 1 e as alíneas d) e e) do nº 3 do artigo 6º da convenção
europeia dos direitos do homem.
EXPURGAÇÃO
DE VÍCIOS
Numa
lógica de sinépica, afastada do tradicional silogismo judiciário, a aplicação
da lei com a consequente declaração de nulidade tem, neste caso, a saudável
consequência, para todos os sujeitos processuais, de proporcionar a repetição
da diligência que decorreu em assincronia com a vulgata das declarações para
memória futura.
Na
perspetiva da defesa, o aspeto mais consentâneo com as normas do processo penal
foi precisamente a declaração de nulidade, logo proferida no início, na
sequência de os arguidos quererem estar presentes na diligência e ter-lhes sido
negada a entrada na sala onde a mesma decorria.
Depois,
sucederam-se uma série de ocorrências, que só por si, não fosse a falta de
intérprete, bem justificariam nova tomada de declarações para memória futura,
com benefício para todos.
a)
O meritíssimo juiz a quo parece ter
compreendido que a testemunha dissera que a arguida Gisela Manuela Delca Pinto havia
prometido matá-la, quando a testemunha terá afirmado que o arguido Ildefonso
Manuel Santos Carvalho é que a ameaçara
b)
O meritíssimo juiz a quo não
questionou nenhum dos arguidos sobre a alegada ameaça e afastou-os da sala, sem
dizer que haveria razões para crer que a sua presença inibiria a testemunha de
dizer a verdade, tendo posteriormente revelado que se tratava de uma situação
de perigo, afigurando-se recear que a testemunha fosse ali assassinada, o que
já entraria no domínio da manutenção da ordem e eventual auxílio da força
pública (nº 4 do artigo 85º do CPP), mas não do afastamento dos arguidos
c)
Decidiu obrigá-los a sair das instalações do tribunal, em ofensa ao regime
prescrito pelo artigo 352º e pelo nº 7 do artigo 332º do CPP
d)
Mandou extrair certidão para efeitos de procedimento criminal, sabendo que o
crime de ameaça reveste natureza semi-pública (nº 2 do artigo 153º do Código
Penal), mas não perguntou se a testemunha desejava procedimento criminal, para
o que ela teria de descrever o local, o momento temporal e as palavras
proferidas, o que transformou a certidão num instrumento de pouco relevo,
atenta a falta de legitimidade do Ministério Público (nº 1 do artigo 49º do
CPP)
e)
O meritíssimo juiz a quo é que
indagou a testemunha quanto às interrogações suscitadas pelo digno magistrado
do Ministério Público, em vez de este formular as perguntas à testemunha,
conforme preceituado pelo nº 5 do artigo 271º do CPP, tendo o juiz explicado
que o Senhor procurador-adjunto colocou as questões como bem entendeu, como se
esta norma fosse de aplicação supletiva
f)
No final, o meritíssimo juiz a quo
não relatou resumidamente aos arguidos o que se passou na sua ausência,
provocando a nulidade prevista no nº 7 do artigo 332º do CPP.
Assim,
a declaração de nulidade conforme imposto pela alínea c) do nº 2 do artigo 120º
do CPP acarreta o benéfico corolário de permitir nova tomada de declarações
para memória futura, em moldes diferentes dos adotados na diligência já realizada.
Trata-se
também de evitar que permaneça nos autos um meio de prova proibido, porque
colhido ilegalmente: artigo 125º e nº 3 do artigo 118º do CPP.
CONCLUSÕES
1ª
A testemunha que prestou declarações tem como língua materna o russo.
Compreende o português, mas exprime-se em espanhol ou castelhano.
2ª
O quadro europeu comum de referência para as línguas é o único instrumento para
aferir se uma testemunha domina ou não a língua portuguesa, porque aprovado
pelo Conselho da Europa, de que o Estado Português é membro.
3ª
Como a testemunha compreende o português, mas não se exprime em língua
portuguesa, não atinge sequer o nível A1, o grau mais baixo de tal padrão.
4ª
A língua portuguesa não é estranha à testemunha, mas ela não a domina.
5ª
É obrigatória a nomeação de intérprete.
6ª
Mesmo que o juiz de instrução criminal ou qualquer dos participantes conheça o
espanhol, tal obrigatoriedade mantém-se.
7ª
A falta de nomeação de intérprete tem como resultado a nulidade das declarações
para memória futura, vício que foi arguido pela defesa no decurso do ato.
8ª
Não se verificou a sanação da nulidade.
9ª
São inválidas as declarações para memória futura.
10ª
O nº 2 do artigo 92º do CPP é inconstitucional, por violação dos nºs 1 e 5 do
artigo 32º da Lei Fundamental, quando interpretado no sentido de que não é
obrigatória a nomeação de intérprete se apenas a "má vontade" a impuser, pois não fica assegurado ao arguido o
direito de entender as respostas, de modo a formular perguntas, no respeito
pelo princípio do contraditório.
11ª
Da declaração da nulidade invocada, resultaria a intervenção de intérprete,
como era pretensão da defesa.
12ª
Não decidindo dessa forma, o meritíssimo juiz a quo não assegurou as garantias de defesa do arguido e impediu-o de
exercer os seus direitos processuais, violando o disposto no artigo 10º e no nº
1 do artigo 11º da declaração universal dos direitos do homem e do que
estabelecem o nº 1 e as alíneas d) e e) do nº 3 do artigo 6º da convenção
europeia dos direitos do homem.
13ª
Arredado o velho silogismo judiciário e adotando a interpretação sinépica, a
declaração de nulidade tem como consequência a todos beneficiar, com nova
tomada de declarações para memória futura, em moldes diferentes dos que
ocorreram durante a diligência realizada, marcada por ocorrências que estão em
assincronia com a tramitação legalmente consagrada e a vulgata de atos
semelhantes, mormente por inobservância do que dispõem o nº 1 do artigo 49º, o nº
4 do artigo 85º, o nº 5 do artigo 271º, o nº 7 do artigo 332º e o artigo 352º
do CPP assim como o nº 2 do artigo 153º do Código Penal.
14ª
Por outro lado, evita-se que permaneça nos autos um meio de prova proibido,
porque colhido ilegalmente.
15ª
Foram violados os seguintes preceitos legais:
do
código de processo penal
-
nº 1 do artigo 49º
-
nº 4 do artigo 85º
-
nº 2 do artigo 92º
- alínea
c) do nº 2 do artigo 120º
- alínea
a) do nº 3 do artigo 120º
- artigo
121º
- nº
1 do artigo 122º
-
nº 5 do artigo 271º
-
nº 7 do artigo 332º
-
artigo 352º
do
código penal
- nº
2 do artigo 153º
da
constituição
- nº
3 do artigo 8º
- nºs
1 e 5 do artigo 32º
da
convenção europeia dos direitos do homem
- nº
1 e alíneas d) e e) do nº 3 do artigo 6º
da
declaração universal dos direitos do homem
- artigo
10º
- nº
1 do artigo 11º.
16ª
Termos em que
deve
ser revogada a decisão recorrida, declarando-se a nulidade das declarações para
memória futura.
Instruem
o presente recurso o auto de declarações para memória futura, a transcrição e o
registo fonográfico.
Vão
as cópias (nº 6 do artigo 411º do CPP).
O
Advogado,